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Odisseia – versos 152-566 –

As características do Esclarecimento apresentadas pela Teoria Crítica já estão nos mitos gregos

 

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

 

O trecho do poema homérico Odisseia – versos 152 usque 566 – ora utilizado no intuito de se demonstrar que nos mitos gregos já se faziam presentes as características do Esclarecimento segundo a Teoria Crítica, refere-se à aventura vivida por Ulisses na ilha dos ciclopes, gigantes monstruosos dotados de um só olho no centro da testa.

 

Em aludida obra, são narrados os percalços e dissabores por que passou o herói Ulisses na sua viagem de regresso à Ítaca, ilha onde era rei. Dentre as dificultosas provações que se lhe ergueram como óbice ao seu intento de chegar ao seu lar, afigura-se o episódio ora em comento, passado, como acima referido, na ilha dos ciclopes, onde Ulisses, com sua astúcia, valendo-se de ardis, sobrepujou a força bruta e natural do monóculo gigante.

 

É, justamente, com fulcro na descrição homérica do comportamento astucioso de Ulisses, do modo como sua racionalidade laborou sobrepondo-se aos seres fantásticos, que se pautará o presente trabalho exegético.

 

O esclarecimento, o valer-se eminentemente da racionalidade, constituiu o projeto iluminista cuja pretensão se assentava em redimir o mundo pelo conhecimento. Todavia, segundo informa a teoria crítica em Adorno e Horkheimer, na obra Dialética do Esclarecimento, o que se deu foi o contrário, isto é, viu-se o nascimento de uma sociedade repressora e totalitária, já que o programa iluminista, sustentado no processo de contínua racionalização, supôs ser objetivo e neutro o conhecimento e, também assim, a filosofia e a ciência que nele se escoram.

 

Nesse diapasão é que, pela produção de verdades da razão, retirava-se dos homens o pesado fardo do medo decorrente da incerteza do mundo. Com isso, supunha-se estarem assegurados a ordem e o sentido à existência humana, sem lugar para os mitos, cujo desmonte se implementou.

 

Assim, a previsibilidade proporcionada pelo conhecimento, em substituição à insegurança do incerto, do imprevisível, passou a servir de bússola para as sociedades que, desse modo norteando-se, colocar-se-iam a salvo da barbárie. Eis aí a fórmula: controlar o mundo pela técnica e, por conseguinte, aproximando, em sinonímia, poder e conhecimento. Tem-se aí, portanto, o fundamento do projeto moderno, consubstanciado no desencantamento do mundo.

 

A objetivação da natureza pelo conhecimento conferiu ao homem o status de sujeito que, sobre ela, agora, detém o poder de dominá-la, de subjugá-la. Contudo, absorto por sua pretensa onipotência, descuidou-se o homem de que tal dominação da natureza, por intermédio dos sujeitos possuidores do saber, possibilita ao homem subordinar o próprio homem, degradando-o como mero elemento daquela natureza dominada.

 

Destarte, pode-se do até aqui exposto extrair que o conhecimento, ao invés de promover a inexorável emancipação da humanidade, acabou por aprisioná-la num ambiente controlado e dominado pelo cálculo, pela exatidão e certeza da matemática.

 

O esclarecimento apresenta-se, pois, totalitário, posto que submete não só a natureza, como a própria sociedade, ao império da quantificação, à lógica formal e à uniformização de suas atividades.

 

Nota-se aí a contradição, já que a desconstrução do mito, que tornaria os homens senhores de si, por meio da liberdade conferida pelo conhecimento, acaba por aprisioná-los no jogo universal do poder-dominação, pelo que se pode denominar de razão do mercado, que se tornou a instância de exercício do controle.

 

De tal modo que o mercado, democrático na indiferença acerca dos que nele se apresentam para a troca de suas mercadorias, demanda que as qualidades individuais dos consumidores sejam, também, formatadas segundo o molde pelo qual são produzidas as mercadorias. Mercado e Ciência, igualmente indiferentes a construir um mundo indiferente, à sua imagem e semelhança, que culmina por a todos levar à perda da capacidade de reflexão ante o automatismo que se lhes impõe. Mundo reificado e incapaz de rever seus rumos, tampouco a justiça de seus fins. O homem se vê, então, de agente transformador que se supunha, transformado, por fim, em mera peça da engrenagem do motor mercadológico, este sim, onipresente e onipotente. Eis o nascimento de uma sociedade massificada, amorfa, indistinta e indiferente.

 

Então, igualados pelo conhecimento imparcial, uniformiza-se o poder dos membros da sociedade que, agregando-se também uniformemente, ensejam o fenômeno da divisão social do trabalho, nada além que mais uma imposição do mercado, cuja racionalidade é mais uma vez reproduzida.

 

Nessa esteira, a educação de massa sobrepõe-se à humanista, uma vez que a demanda do mercado é pela capacitação técnica, com base na qual alguém poderá dizer-se bem-sucedido e, então, agora remunerado com base no seu maior ou menor valor mercadológico, o sujeito, convertido em consumidor, encontrará seu lugar social.

 

Diante do que se delineou nestas breves linhas, escorço notadamente singelo da teoria crítica do esclarecimento, evidencia-se que no âmbito de sua abordagem já se encontravam os mitos gregos, haja vista em a Odisseia, como lecionam Adorno e Horkheimer:

 

“A oposição do ego sobrevivente às múltiplas peripécias do destino exprime a oposição do esclarecimento ao mito. A viagem errante de Troia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar na consciência de si.”[1]

 

E prosseguem:

 

“O náufrago trêmulo antecipa o trabalho da bússola. Sua impotência, para a qual nenhum lugar do mar permanece desconhecido, visa ao mesmo tempo a destituição das potências. Mas a simples inverdade do mitos – a saber, que o mar e a terra na verdade não são povoados de demônios, efeitos do embuste mágico e da difusão da religião popular tradicional – torna-se aos olhos do emancipado um ‘erro’ ou ‘desvio’ comparado à univocidade do fim que visa em seu esforço de autoconservação: o retorno à pátria e aos bens sólidos. As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que desviam o eu da trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução, experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido por uma tola curiosidade (...)”[2].

 

E arrematam aludidos filósofos tudescos:

 

“O recurso do eu para sair vencedor das aventuras: perder-se para se conservar, é a astúcia. O navegador Ulisses logra as divindades da natureza, como depois o viajante civilizado logrará os selvagens oferecendo-lhes contas de vidro coloridas em troca de marfim (...)”[3].

 

Imprescindível colacionar ao presente texto, ainda, o que referidos filósofos asseveraram sobre o emprego da astúcia por Ulisses, relativamente à sua passagem pela ilha dos ciclopes, a corroborar a presença das características da teoria crítica já nos mitos gregos.

 

Neste sentido, dispuseram:

 

“A astúcia, contudo, consiste em explorar a distinção, agarrando-se à palavra, para modificar a coisa. Surge assim a consciência da intenção: premido pela necessidade, Ulisses se apercebe do dualismo, ao descobrir que a palavra idêntica pode significar coisas diferentes. Como o nome Oudeis pode ser atribuído tanto ao herói quanto a ninguém, Ulisses consegue romper o encanto do nome. Ulisses descobre nas palavras o que na sociedade burguesa plenamente desenvolvida se chama formalismo (...) É do formalismo dos nomes e estatutos míticos, que querem reger com a mesma indiferença da natureza os homens e a história, que surge o nominalismo, o protótipo do pensamento burguês. A astúcia da autoconservação vive do processo que rege a relação entre a palavra e a coisa. Os dois atos contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo – sua obediência ao nome e seu repúdio dele – são, porém, mais uma vez a mesma coisa. Ele faz profissão de si mesmo negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer. Essa adaptação pela linguagem ao que está morto contém o esquema da matemática moderna”[4].

 

 

 

Referência Bibliográfica

 

 

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

 

HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Hedra, 2011.

 

JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. 5 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

 

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Tradução de Myriam Campello. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

 

VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

 

GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre: L&PM, 2010.

 

 

[1] ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 49.

 

[2] Idem, p. 50.

 

[3] Ibidem, p. 50.

 

[4] Ibidem, p. 57-58.

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