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COMENTÁRIOS AO FRAGMENTO ABAIXO DESTACADO

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

 

 “Os ídolos e as noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente os obstruem a ponto de ser difícil o acesso a verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.” Bacon, Novum Organum. São Paulo: Abril Cultural, p. 20-21.

 

 

Nascido em Londres no ano de 1561 e autor da célebre frase “saber é poder”, Francis Bacon chegou ao mundo no ápice do Renascimento que, na lição de Julián Marías, trata-se de uma “longa etapa de indecisão que vai do último sistema escolástico original e alerta – o ockhamismo – à primeira formulação madura e clara do pensamento da modernidade – a filosofia cartesiana”[1].

 

Pode-se dizer, com poucas ressalvas de alguns teóricos, que Francis Bacon erigiu-se como o pioneiro da ciência, unindo o interesse especulativo ao técnico e a concebendo como “destinada a realizar o domínio do homem sobre a natureza”[2]. De todo modo, Bacon parece ter sabido mais falar da ciência do que propriamente utilizá-la ou mesmo compreendê-la tecnicamente. Todavia, seu modo de falar era inusitado, e sua clarividente compreensão do que viria a ser o mundo moderno criou um panorama histórico-filosófico insubstituível para sua época e, de certa forma, para os séculos imediatamente posteriores.

 

Bacon propôs um método científico que suspendia a maioria das crenças tradicionais em prol de um projeto que visava estabelecer uma nova e abrangente compreensão do mundo, como adiante exposto de forma mais detalhada, vale dizer, “quis tornar a ciência activa e operante, colocando-a ao serviço do homem e considerando como seu escopo a constituição de uma técnica que devia dar ao homem o domínio de todo o mundo natural”[3].

 

O modelo de ciência proposto por Bacon em seu Novum Organum baseava-se numa lógica indutiva e, assim, rompia com a tradição, porquanto opunha-se à lógica aristotélica, dedutiva e silogística – daí Novum Organum, opondo-se ao Organum aristotélico –, na medida em que defendia a ideia de que o método científico correto deveria alicerçar-se na coleta cuidadosa de evidências e na experiência, sendo a ciência uma atividade cooperativa, dependendo seu avanço, pois, da cooperação organizada de inúmeros cientistas.

 

Assim, Bacon, sob o entendimento de que a interpretação da natureza, para não padecer de equívocos, deve ser realizada de forma metódica, estabeleceu estágios em seu método, a saber:

 

O primeiro estágio do projeto baconiano, por assim dizer, consistia no ajuntamento do maior número de informações possíveis acerca do objeto de estudo, por meio da observação direta, sem prejulgamentos e, então, tais dados deveriam submeter-se a cuidadoso filtro, a fim de que erros e absurdos fossem removidos; o estágio seguinte, em que os dados eram agrupados, passava pela formulação de candidatos plausíveis a tornarem-se leis gerais. Bacon entendia que era necessário buscar um número limitado de características básicas, de modo que as leis candidatas cobrissem todas as combinações dessas características. Então, a considerar que nesse estágio há acentuado risco de o cientista deixar-se influenciar por crenças irracionais, Bacon defendeu que um trabalho indutivo seria capaz de tirar o homem do engano e do erro, evitando o que denominou de ídolos, sintetizados e distribuídos em quatro classes, quais sejam: 1) os ídolos da tribo (idola tribus); 2) ídolos da caverna (idola specus); 3) ídolos do mercado (idola fori) e, finalmente, 4) ídolos do teatro (idola theatri).

 

Acerca desses ídolos tem-se que os ídolos da tribo são os elementos que fazem parte da natureza humana, ou seja, aquilo que é próprio à espécie humana (tribo humana). A ideia, neste caso, é a de que nem sempre as coisas são vistas como são; nem sempre é possível percebê-las escorreitamente, já que a constituição da natureza humana é deturpadora, tal como revela a metáfora do espelho, isto é, nosso intelecto é como um espelho que reflete de modo desigual os raios dos objetos, causando imagens distorcidas e corrompidas. Os ídolos da caverna, por seu turno, não se atrelam à espécie humana como um todo, mas são os elementos próprios dos indivíduos que têm, cada qual, sua caverna, seu mundo, aqui entendida “a caverna” em conformidade com a alegoria da caverna de Platão. Destarte, a caverna de cada um é fruto da constituição individual da educação ou da convivência com outros, tampouco sendo despiciendos os livros e as falas das autoridades que alguém possa admirar. Os ídolos do foro, também chamados da praça, provêm da associação recíproca dos indivíduos, da sociedade que organizam, implementando-se por meio da linguagem, afinal, a linguagem, criada pelo vulgo, não pode fazer outra coisa senão atuar de modo inepto, bloqueando o intelecto. Os ídolos do teatro residem nos equívocos decorrentes da própria filosofia, ou melhor, das várias doutrinas filosóficas a que o indivíduo tem acesso. Abbagnano esclarece que “Os homens crêem impor a sua razão às palavras: também sucede que as palavras a distorçam e espelhem a sua força sobre o intelecto”[4].

 

Isto posto acerca dos ídolos baconianos, mister se faz assentar que Bacon jamais negou poder de conhecimento à teologia, muito embora tivesse advogado uma separação entre esta e a filosofia, firmando pé na ideia de que eram conhecimentos diferentes, vale dizer, o conhecimento filosófico, que hoje engloba o que se chama de ciência, seria necessário para possibilitar o controle do mundo, i.e., a efetiva finalidade pela qual valeria a pena conhecer as coisas e eventos ao nosso redor.

 

Finalmente, na sequência dos estágios do método baconiano, superados os ídolos e, então, exsurgindo as leis candidatas suprarreferidas, impunha-se testá-las contra os dados e, na impossibilidade de encontrar-se entre os dados existentes uma evidência para distingui-las, eram elas produzidas a partir de um “experimento crucial” que permitiria testar suas implicações e, assim, indicar a correta.

 

Finalmente, importa ressaltar que a concepção de mundo que sustentou a teoria de Bacon era efetivamente moderna, diferenciando-se do pensamento grego antigo, afinal, considerável parte dos pensadores gregos (à exceção dos céticos) reputava o erro como contingente e a verdade como estrutural, não admitindo que o homem pudesse viver em erro, enganado, e que a linguagem fosse correta; mas o pensamento moderno seguiu o hábito medieval e cristão, com a ideia básica de que o homem padece de defeitos de fabricação e de percurso, sendo mais provável que esteja equivocado que correto. Nesse ponto, Bacon aparece na história da filosofia numa condição inequívoca do pensamento moderno.

 

 

Referência Bibliográfica

 

 

Bacon – Vida e Obra: tradução de José Aluysia Reis de Andrade, São Paulo: Nova Cultural, 1999.

 

LAW, Stephen. Filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão técnica de Danilo Marcondes. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

STOKES, Philip. Os 100 pensadores essenciais da filosofia. Tradução de Denise Cabral de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 2012.

 

REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Kant. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2.

 

MARÍAS, Julián. História da filosofia; tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. 5 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000, v. 6.

 

VICENTINO, Cláudio. História geral. 8 ed. São Paulo: Scipione, 1999.

 

 

[1] MARÍAS, Julián. História da filosofia; tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 271.

 

[2] ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. 5 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000, v. 6, p. 15.

 

[3] Idem, p. 16.

 

[4] Ibidem, p. 19.

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