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Mercantilização da Justiça como decorrência da Vida Inautêntica: uma leitura cruzada entre Heidegger, Adorno e Horkheimer

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

RESUMO

 

A dicotomia sujeito-objeto ensejou a preponderância do saber científico, do saber técnico sobre outros saberes, colocando o mundo e o próprio humano na condição de seres manipuláveis. O humano, assim tornado coisa, teve seu valor reduzido à sua capacidade técnica, sendo classificado e tendo seu sucesso determinado pela sua maior ou menor produtividade, ou seja, encontra-se submetido a uma valoração segundo parâmetros mercadológicos, que reduz tudo a mero recurso, a objetos de troca amoldados à indiferença do mercado, erigindo-se uma sociedade indiferente, reificada e regida pelo automatismo imposto pela racionalidade instrumental que a torna incapaz de pensar seus rumos, tampouco a justiça de seus fins, onde o humano é mera peça da engrenagem do onipresente e onipotente Mercado; uma sociedade massificada, amorfa, indistinta e indiferente. Insculpido nesse quadro, e moldado ao seu formato, é que se encontra o Direito hodierno e a Justiça que de sua práxis advém: um degradado modelo que se reduz a uma linha de produção de demandas e soluções assentadas na padronização, sob o molde fordista, voltada à satisfação dos anseios de um sujeito-massa, amorfo e sem face, sem espaço para a singularidade, para as nuances da concretude de cada caso; perde-se a individuação pela preponderância das metas e estatísticas quantitativas de avalição mercadológicas, em detrimento da efetiva valoração do conteúdo ético das decisões. Eis aí a mercantilização da Justiça pela mercantilização do instrumento de sua realização que é o Direito.

 

Palavras-chave: Direito, Justiça, Mercantilização, vida inautêntica, racionalidade.

 

 

ABSTRACT

 

The subject-object dichotomy gave rise to the preponderance of scientific knowledge, of technical knowledge about other kind of knowledges, putting the world and the human being as manipulable beings. The human, thus made, had its value reduced to its technical capacity, being classified and having its success determined by its greater or lesser productivity, that is, it is submitted to a valuation according to market parameters, that reduce everything into mere resource, into objects of exchange shaped by the indifference of the market, establishing itself as an indifferent society, reified and governed by the automatism imposed by instrumental rationality that makes it incapable of thinking its course, nor the justice of its goals, where the human is merely a part of the omnipresent and omnipotent market gear; a mass society, amorphous, indistinct and indifferent. Inspired in this framework, and molded to its format, it is the current Right and Justice that comes from its praxis: a degraded model that is reduced to a production line of demands and solutions based on standardization, under the Fordist mold, aimed at satisfying the desires of a subject-mass, amorphous and without face, without space for singularity, nor to the nuances of the concreteness of each case; it loses the individuation by the preponderance of the goals and quantitative statistics of market valuation, to the detriment of the effective valuation of the ethical content of the decisions. This is the mercantilization of Justice by the commodification of the instrument of its realization, the Right on courts.

 

Keywords: Law, Justice, Mercantilization, inauthentic life, rationality.

 

 

 

MERCANTILIZAÇÃO DA JUSTIÇA COMO DECORRÊNCIA DA VIDA INAUTÊNTICA: UMA LEITURA CRUZADA ENTRE HEIDEGGER, ADORNO E HORKHEIMER

 

 

A abordagem do tema proposto se faz a partir da crítica de Heidegger (1889-1976) ao projeto da Modernidade, em cotejo com a correlata visão de Adorno (1903-1969) e Horkheimer (1895-1973), segundo o que expuseram na obra Dialética do Esclarecimento.

Heidegger criticou tanto a metafísica tradicional quanto o positivismo, entendida a metafísica, neste particular, como o que foi expresso por Platão e Descartes e, quanto ao positivismo, sua vertente lógica do Círculo de Viena. No entanto, ultrapassando a mera crítica, Heidegger teceu suas considerações com a pretensão de fornecer uma saída aos impasses da filosofia ocidental, outrora denunciados por Nietzsche, de tal sorte que a filosofia autêntica teria que escapar do modo moderno de pensar, ou seja, deveria reinventar o pensamento capaz de desvelar o ser, o que é.

 

Assim, Heidegger, partindo da visão da metafísica como sendo a origem do pensamento dualista, i.e., da distinção entre o real e o aparente (mundo inteligível e mundo sensível), derivou que a metafísica também foi, na modernidade, a gênese da dicotomia sujeito-objeto, de modo que os modernos, imaginando equivocadamente estarem libertos da metafísica (ideal positivista), acabaram por sucumbir a ela, sob uma nova forma, a delineada pelo projeto cartesiano, ou seja, a metafísica da certeza do cogito, a que Heidegger denominou “metafísica da subjetividade”, o que soa apropriado, já que considerou o projeto cartesiano como o esteio no qual Kant construíra sua noção de “eu” e de “subjetividade” como as bases do pensamento moderno, conferindo às ciências a obrigação de começar seus procedimentos reputando o “eu” como sujeito e o “mundo” como objeto.

 

Dessarte, nesta esteira, com o sujeito relacionado ao humano e o objeto associado ao mundo, tudo seria para o humano, então transformado em palco do mundo e legitimador do que existe, vale dizer, o que existe não existe por si, mas, uma vez objeto, existe apenas para o humano-sujeito e no humano-sujeito. O mundo, então, não é o que se faz presente, mas o que é representado num palco, que é o próprio humano.  O mundo foi transformado, pois, em concepção do mundo, em imagem do mundo, cuja existência somente se dá à medida em que é representado pelo humano e, portanto, o existente torna-se passível de manipulação, sendo o humano o manipulador.

 

Ocorre, todavia, que, nesse processo, não apenas o mundo é transformado em objeto, como, também, o próprio humano, que se torna algo manipulável. A consequência disso, dessa manipulação do humano pelo humano, é que a filosofia acaba por reduzir-se, em boa medida, à epistemologia, e a vida cotidiana, que se deixa dominar pela ciência, pela técnica e pela tecnologia, acaba por submeter o humano a condições de escravização material e, inclusive, à degradação física.

 

Então, nessa linha de pensamento trilhada por Heidegger, pode-se dizer que a Modernidade (Iluminismo) produziu três consequências:

1) na seara filosófica, a hegemonia da epistemologia;

2) na cultura, o domínio da ciência e;

3) na vida cotidiana, a preponderância do saber tecnológico.

 

O pensamento filosófico, uma vez reduzido à epistemologia, teria a pretensão de estabelecer uma teoria para descrever como o homem descobre ou produz o saber, o que nada seria senão a forma de redução da filosofia ao esquema sujeito-objeto, cujo resultado iria apresentar-se conforme a reprodução do esquema manipulativo. A cultura, uma vez transformada em cultura científica, forçaria todos a valorizar o saber metodológico em detrimento de outros tipos de saber. Os procedimentos ganhariam mais força que as metas e a vida cotidiana, então conduzida pela tecnologia, terminaria por ver tudo em termos de “recurso” – o que “rende” e o que “não rende”, passando as relações humanas a nortearem-se por essa bússola. A educação estaria voltada a tornar os humanos mais habilidosos para servirem como recurso – “recursos humanos”, tanto quanto o mundo como objeto. Tudo e todos transformados em objetos de troca.

 

Em função desse quadro delineado, Heidegger pretendeu escapar de tal mundo moderno, no qual o encontro do humano com as coisas, e consigo mesmo, segundo o modelo sujeito-objeto, torna-o, concomitantemente, manipulador e manipulado, vale dizer, dominador e dominado. Para Heidegger, a filosofia como epistemologia e a vida como recurso tecnológico deveriam ser deixadas de lado em prol do ser, i.e., daquilo que é e que se mostra sem representação, o que poderia ser feito por meio da linguagem, não reduzida a códigos simples, como no projeto positivista, mas, doutro modo, pela volta à experiência da linguagem em sintonia com o fenômeno, o escutar a “voz do ser” que fala ao humano, e não como o que é falado segundo o comando de pretensos sujeitos. A experiência fenomenológica, denominada, então, de autêntica, não comporta submissão à semântica e à sintaxe.

 

O filósofo, em abandono a essa vida inautêntica erigida pela Modernidade, teria uma porta de escape da dualidade sujeito-objeto e do processo de manipulação que daí decorre.

 

Diante desse poderoso pensamento heideggeriano, não obstante com ele convergissem em grande parte, Adorno e Horkheimer dele divergiram quanto à exclusão, ao esvaziamento da noção de sujeito, já que isso implicaria uma renúncia aos ganhos proporcionados pelo Iluminismo e decorrentes da autonomia do sujeito.

 

Para esses filósofos, o indivíduo autêntico é uma forma de denominação do sujeito e uma de suas principais prerrogativas é a de comandar todos os processos que estão em seu meio e, neste mister, o indivíduo autêntico é o sujeito, i.e., aquele que age com consciência dos pensamentos e reponsabilidade pelos atos que pratica.

 

Então, sob este viés, o que deve ser criticado, diversamente do que fizera Heidegger, não é a dualidade sujeito-objeto, mas a racionalidade instrumental, cujo propósito resume-se em, sem reflexão e crítica sobre os fins, meramente encontrar meios mais hábeis para mais facilmente se alcançar um resultado irrefletido.

 

Uma tal racionalidade reduz o indivíduo autêntico a um mero executor capenga, despido de toda a extensão de suas possibilidades, restando, pois, prejudicadas a consciência de seus pensamentos e, também, a responsabilidade por seus atos.

 

Mas qual, então, a solução apresentada?

 

Dentre as obras que abordaram a questão, como dito na abertura deste trabalho, escolheu-se a Dialética do Esclarecimento que, em síntese, narra, de forma alegórica, o que seria a história da construção da razão ocidental, ou seja, sua proposta filosófica foi a de remontar a história do pensamento para esclarecer cada passo da razão no caminho que a transformou numa razão instrumental, de modo não apenas a condenar como, principalmente, compreender como se erigiu a subjetividade moderna, na qual o humano tornou-se sujeito da racionalidade do estratagema, do engodo, da dissimulação visando à satisfação de um fim acerca do qual não mais se reflete.

 

A Dialética do Esclarecimento mostra como o esclarecimento, o valer-se eminentemente da racionalidade instrumental, constituiu o projeto iluminista cuja pretensão se assentava em redimir o mundo pelo conhecimento. Entretanto, o que se deu foi o contrário, i.e., viu-se o nascimento de uma sociedade repressora e totalitária, já que o programa iluminista, sustentado no processo de contínua racionalização, supôs ser objetivo e neutro o conhecimento e, também assim, a filosofia e a ciência que nele se escoravam.

 

Nesse diapasão é que, pela produção de verdades da razão, buscou-se retirar do humano o pesado fardo do medo decorrente da incerteza do mundo, numa suposição de que, assegurando-se a ordem e o sentido à existência humana, sem lugar para os mitos, cujo desmonte se implementou, a questão do medo estaria solucionada.

 

A previsibilidade proporcionada pelo conhecimento, em substituição à insegurança do incerto, do imprevisível, passou a servir de bússola para as sociedades que, desse modo norteando-se, colocar-se-iam a salvo da barbárie. Eis aí a fórmula: controlar o mundo pela técnica e, por conseguinte, aproximar, em sinonímia, poder e conhecimento. Aí está, pois, o fundamento do projeto moderno, consubstanciado no desencantamento do mundo.

 

A objetivação da natureza pelo conhecimento conferiu ao homem o status de sujeito que detém o poder de dominá-la, de subjugá-la. Contudo, no seu delírio de onipotência, descuidou-se o humano de que tal dominação da natureza, por intermédio dos sujeitos possuidores do saber, resultaria na subordinação do humano a si mesmo, degradando-se como mero elemento daquela natureza dominada, num movimento que, ao invés de promover a inexorável emancipação da humanidade, acabou por aprisioná-la num ambiente controlado pelo cálculo, pela exatidão e pela certeza da matemática.

 

O esclarecimento apresenta-se, pois, totalitário, haja vista submeter não somente a natureza, como a própria sociedade, ao império da quantificação, à lógica formal e à uniformização de suas atividades.

 

Nota-se aí a contradição, já que a desconstrução do mito, que tornaria os homens senhores de si, por meio da liberdade conferida pelo conhecimento, acabou por aprisioná-los no jogo universal do poder-dominação, cuja racionalidade é a “razão do mercado”, que se tornou a instância de exercício do controle.

 

O Mercado, então democrático na indiferença acerca dos que nele se apresentam para a troca de suas mercadorias, demanda que as qualidades individuais dos consumidores sejam, também, formatadas segundo o molde pelo qual são produzidas as mercadorias.

 

Portanto, Mercado e Ciência, igualmente indiferentes, erigem um mundo indiferente, à sua imagem e semelhança, cujo resultado é a perda da capacidade de reflexão ante o automatismo que é imposto, decorrendo daí uma Sociedade reificada e incapaz de pensar seus rumos, tampouco a justiça de seus fins. O humano torna-se mera peça da engrenagem do motor mercadológico, este sim, o Mercado, onipresente e onipotente. Dá-se, assim, o nascimento de uma sociedade massificada, amorfa, indistinta e indiferente.

 

Agora, igualados pelo conhecimento imparcial, uniformiza-se o poder dos membros da sociedade que, agregando-se também uniformemente, ensejam o fenômeno da divisão social do trabalho, nada além que mais uma imposição do mercado, cuja racionalidade é mais uma vez reproduzida.

 

Não se pode, tampouco, desprezar, nisso tudo, o emprego da linguagem descolada da realidade, i.e., da construção de narrativas deletérias do indivíduo, como célula social de base que é, na medida em que reforçam e encorajam a sua desconstrução em prol da sua diluição em massas que se distinguem por polarizarem-se em função de uma suposta luta pelo poder.

 

Neste ponto, importante salientar que tal linguagem, de viés totalitário, divide os grupos humanos em inocentes e culpados, assentando-se, pois, no ressentimento, que deve ser superado, afinal, como bem assevera Scruton:

 

“(...) vivemos com o auxílio da ajuda mútua e do coleguismo não para que todos sejam igual e inofensivamente medíocres, mas para ganhar a cooperação dos outros em nossos pequenos sucessos.” [1]

Portanto, o ressentimento não pode tornar-se, como há muito está a ocorrer, uma postura existencial, uma vez que aquele que vive sob esta perspectiva, nas palavras de Scruton:

 

“será contra todas as formas de mediação, compromisso e debate, e contra as normas legais e morais que dão voz ao dissidente e soberania ao cidadão comum. Tentará destruir o inimigo, concebido em termos coletivos, como classe, grupo ou raça que até então controlou o mundo e que, agora, precisa ser controlado. E todas as instituições que concedem proteção àquela classe ou lhe dão voz no processo político serão alvo de sua raiva destruidora.” [2]

Nessa esteira, a educação de massa sobrepõe-se à humanista, uma vez que a demanda do mercado é pela capacitação técnica, com base na qual será estabelecida a remuneração e o próprio conceito do que é ser alguém bem-sucedido, ou seja, o humano, pelo só fato de ser humano, não tem nisso um valor intrínseco, mas seu valor passa a ser dado por seu potencial mercadológico: o sujeito, convertido em consumidor, encontrará seu lugar social.

 

O que sobressai desse cenário é a redução do humano ao seu valor mercantil, num sistema axiológico em que cada pessoa pensa e age norteada pela opinião alheia, que se assenta em bases igualmente mercantis, de modo que tal relação de alteridade constitui-se num círculo vicioso, cuja força motriz é a necessidade de pertencimento a um grupo de concepções e objetivos mal refletidos, mas que se sustentam por serem semelhantes, ficando, assim, arredadas quaisquer possibilidades de identidade ou inteireza; liberdade e autonomia individual submetidas ao preço de mercado.

 

Insculpido nesse quadro, e moldado ao seu formato, é que se encontra o Direito hodierno, compreendido, neste trabalho, como a via de acesso à Justiça, entendida, no limite, como a realização da pacificação dos conflitos de interesses (pretensões resistidas) e, por conseguinte, da própria pacificação social.

 

Então, uma vez eivado o Direito, maculada resultará a Justiça que por ele se efetivar. E o Direito, no seu desiderato, não pode descuidar-se da fiel observância aos preceitos que o norteiam, ou seja, na lição de Ulpiano [3]: “Juris Praecepta Sunt haec: Honeste Vivere, Alterum Non Laedere, Suum Cuique Tribuere” [4].

Ocorre, todavia, que o Direito, como via para Justiça, não passou ileso a esse processo histórico que levou à predominância da racionalidade instrumental fomentadora da vida inautêntica, em que, como asseverado, o sujeito perde sua autonomia.

 

Retroagindo na história, tem-se o fenômeno da separação dos poderes, decorrente da ideia de, com isso, evitar-se o despotismo real, ou seja, separar os Poderes consistia num meio para inibi-los reciprocamente e, sob tal perspectiva, o Judiciário se punha nulo (neutro politicamente). Vale aqui relembrar que, para Montesquieu, o poder de julgar era, de certo modo, nulo, de tal sorte que não restariam senão dois.

Nascia, assim, o Estado de Direito, caracterizado por um Judiciário balizado pela neutralidade e que, portanto, centrava-se, no desempenho de suas atribuições judicantes, na imparcialidade e no apartidarismo do juiz.

 

Importante destacar não ser ante os fatos que se dá a neutralidade, mas sim ante as expectativas institucionalizadas. Então, neste cenário – Estado de Direito – as projeções normativas dirigem-se ao Legislativo, de tal modo que se avolumava a importância do positivismo jurídico, onde a lei, como fonte do direito, encontrava lugar privilegiado, tendo-se, portanto, o enaltecimento do princípio da legalidade e, assim, o ato jurisdicional traduzia-se na subsunção do fato à norma.

 

A atividade jurisdicional era, assim, guiada superiormente pela lei posta que lhe dava, pois, o norte, não se cogitando de atrelá-la a algum direito natural e supostamente sagrado, tampouco se exigindo dele um conteúdo ético, ainda que teleologicamente justificado, afinal, o relevante era obter-se a observância aos ditames da lei, i.e., o seu fiel cumprimento, vale dizer, o direito não mais se apresentava como outrora, quando dele se esperava uma padronização das condutas em função de valores-fins em que se alicerçava e que, assim, pretendia uma equivalência entre a jurisdição e o justo. Então, a partir desse momento, o direito, ocupando-se do caso-a-caso, dirimia os conflitos sem apelo à indagação teleológica, mas por subsunção à lei, fundado no raciocínio condicional (se... então).

 

Nesse ponto, a segurança jurídica (segurança abstrata) ocupava posição axiológica central, que se buscava alcançar por meio de dispositivos legais abstratos, cujo escopo era satisfazer os reclames dos casos concretos.

 

A legitimidade da atividade jurisdicional se verificava, pois, na congruência entre a satisfação dos casos concretos pela incidência dos dispositivos legais dados in abstracto pelo legislador, de tal modo que era o juiz, no seu papel instrumental, quem deveria garantir tal congruência, o que dele reclamava postar-se como neutralidade.

 

O processo judicial, sendo funcional, não conferia ao magistrado a possibilidade de legislar, já que a aludida congruência exigia a aceitação de que toda e qualquer mutabilidade do direito decorria de processos legislativos independentes, guardando o direito sua autonomia em relação às individualidades daqueles que o operavam: Lex prima facie valet.

Outro aspecto relevante, no que concerne à neutralidade, é sua sintonia com a relação que há entre Direito e Força, afinal, cabe ao Judiciário regular do uso político da força, i.e., da violência estatal.

 

Por tudo isso que até aqui se expôs é que não se cogitava de politizar a Justiça, afinal, isso implicaria partilhar a responsabilidade pelos resultados do manejo da violência, o que tornaria o juiz um justiceiro e, nessa condição, estaria vulnerável ao sabor das opiniões e, em grande medida, centrar-se-ia na propaganda de sua atuação.

 

Todavia, como já assentado alhures neste trabalho, com o advento da Sociedade Tecnológica, o cerne das (pre)ocupações não mais está no passado, mas volta-se ao futuro, e o Judiciário, neste cenário, em especial em função do advento do denominado Estado de Bem-Estar Social, também se volta ao controle comportamental vindouro, à eficiência dos resultados e à sua efetiva obtenção, passando, pois, a acalentar o desenvolvimento de uma atividade jurisdicional não mais retrospectiva, mas prospectiva.

 

Então, se no Estado de Direito havia clara separação entre Estado e Sociedade e, portanto, as estruturas jurídicas não estavam atreladas às estruturas sociais, de tal sorte que a liberdade protegida era a individual – liberdade negativa – de não impedimento, que não prescindia da neutralidade do Judiciário, mas, pelo contrário, tal neutralidade era uma exigência, no Estado de Bem-Estar Social, contudo, a liberdade protegida é a liberdade positiva, algo a ser realizado e não mais a ser apenas defendido.

 

Neste quadro, o direito à igualdade é condição de acesso à plena cidadania; os direitos sociais não são apenas normativos, não são um a priori formal, mas guardam um sentido prospectivo; trata-se de um cenário onde não há mais lugar para a neutralidade do Judiciário, que passa a uma condição de verdadeiro Poder Avaliador acerca de a discricionariedade do Legislativo estar ou não a conduzir à concretização dos resultados almejados, ou seja, o magistrado assume, a partir daí, uma responsabilidade finalística.

 

E, como já asseverado anteriormente, não se pode desprezar o fenômeno da massificação social, isto é, uma sociedade de consumidores em que tudo se põe como objeto de consumo.

 

Assim, da anterior preocupação com o resguardo dos direitos subjetivos individuais, a exigência hodierna é de mecanismos que protejam o coletivo, chegando-se, inclusive, ao amparo de entes não identificados (seja no âmbito individual seja no coletivo) – são os chamados direitos difusos, e tal reclame, como dito, não se coaduna com a neutralidade do juiz, que se torna a tábua de salvação de todos nas suas mais comezinhas pretensões, mormente num Estado paternalista, que fomenta a infantilização seu povo e eis que o Judiciário torna-se responsável pela implementação dos projetos de mudança social.

 

Com esta nova situação – desneutralização política do juiz –, o Judiciário fica exposto às mais variadas opiniões, assujeitado às massas e aos veículos de comunicação que as manipula (o chamado Quarto Poder), erigindo-se tensões entre sua responsabilidade e sua independência (ex vi controle externo do Judiciário), com destaque para as interferências políticas, como, v.g., a nomeação por políticos dos membros do Supremo Tribunal Federal.

Então, voltando à constatação acerca da expansão tecnológica, não se pode desconsiderar que enseja a ampliação, o alargamento das possibilidades de ação que, por sua vez, incrementa as possibilidades de consumo na sociedade de massas, onde a política e a própria Justiça tornam-se bens de consumo e, nesta condição, a busca pelo prestígio perante as massas torna imprescindível a propaganda, o marketing, que a tudo situa pelo mero valor de uso e troca, mas não por um valor em si.

 

Antes, com a neutralidade do Judiciário, havia a prudência que se perdeu com a politização e que reclama do Judiciário que se integre ao jogo de interesses que prestigia a narrativa que melhor se presta à propaganda.

 

É neste cenário que o sujeito moderno (e mais ainda o denominado pós-moderno), ele próprio assujeitado ao mercado tecnológico, põe-se aos cuidados da Justiça que, como visto, também foi posta ao crivo axiológico do mercado.

 

Desse modo, este sujeito, incapaz de uma reflexão sobre sua própria condição humana, tampouco acerca de sua responsabilidade no convívio social, protegido por um Estado paternalista que patrocina e reforça essa alienação coletiva, é mantido numa infância perene, pondo-se a levar suas mais corriqueiras lamúrias ao Judiciário do Pai-Estado, inundando-o com tão imensa quantidade de ações, que o Direito acaba por degradar-se a uma linha de produção de demandas e soluções assentadas na padronização, sob o molde fordista, voltada à satisfação dos anseios de um sujeito-massa, amorfo e sem face, situação que se pode facilmente constatar quando verificado o mercado literário jurídico, com larga oferta de livros que nada mais contêm senão modelos de petições, i.e., de petições padronizadas (tese), com as correlatas contestações igualmente padronizadas (antítese), cuja síntese, nesta dialeticidade, acaba por ser uma decisão (sentença/acórdão) também padronizada.

 

O caso concreto, a que tanto os ditos profissionais do Direito fazem referência, exsurge como mera construção semântica diante de uma individuação que caiu na vala comum das demandas padronizadas e que atendem a um rentável mercado de massa.

 

O “cada caso é um caso”, vale dizer, o fenômeno individual de cada situação concreta, com suas nuances próprias, suas peculiaridades que o fazem ímpar e incomparável, simplesmente desaparecem, sendo tudo aferido sob o crivo da semelhança com casos outros, donde decorrem normativos apropriados ao julgamento no atacado, donde advêm, v.g., as chamadas súmulas vinculantes e precedentes; soluções estatais para lidar com a teratológica condição humana criada pelo próprio Estado moderno que, agora, incapaz de apresentar soluções de fato individuadas, lança-se na abstração do distinto supondo-o semelhante, olvidando-se que nem sequer bananas de um mesmo cacho se equivalem senão apenas na nomenclatura, na ficção da linguagem (ex vi estudos da linguagem em Nietzsche).

Os Tribunais, antes tratados por Casas da Justiça, ora geridos como casas mercantis, voltados, como já dito, à produção massiva de decisões e à arrecadação de taxas, impostos e contribuições que justifiquem seu mister de composição das beligerâncias. Tudo isso sob o norte ditado por metas quantitativas aferidas pela estatística, que se pauta na quantidade em detrimento do conteúdo ético de cada decisão.

 

Servidores públicos tornaram-se clientes internos das instituições estatais, sendo a população os clientes externos; juízes tornados gestores (gerentes), num claro e inconfundível jargão mercantil, empresarial, a extirpar qualquer sombra de dúvida sobre o viés de mercado que tornou o Direito, a ferramenta, numa finalidade em si mesma, sem maiores reflexões sobre a real efetivação da pacificação social pela composição de cada caso na sua singularidade, já que a preocupação, de regra, reside mais no esvaziamento dos escaninhos (físicos ou eletrônicos) e no cumprimento de metas vazias de sentido ético, que na realização da Justiça.

 

Eis aí o retrato da Justiça que, posto à luz da Teoria Crítica, evidencia-se mercantilizada pela mercantilização do instrumento de sua realização que é o Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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THOMSON, Alex. Compreender Adorno. Tradução de Rogério Berttoni. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

[1] SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da nova esquerda. Rio de Janeiro: Record, 2018, posição 337 – e-book kindle.

[2] Idem

[3] Eneu Domício Ulpiano (em latim: Eneo Domitius Ulpianus; Tiro, 150 - Roma, 223) foi um jurista romano. Sua obra influenciou fundamentalmente a evolução dos direitos romano e bizantino.

[4] Tais são os preceitos do direito: viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o seu.

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