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Breves comentários sobre a passagem kantiana abaixo destacada

 

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

 

“Daí que validade objetiva e validade universal necessária (para todos) são conceitos recíprocos, e, embora não conheçamos o objeto em si, no entanto, quando consideramos um juízo como universalmente válido e, consequentemente, necessário, queremos com isso dizer ser ele de validade objetiva. [...] O objeto em si mesmo permanece sempre desconhecido; mas quando, pelo conceito de entendimento, a conexão das representações, dadas por ele à nossa sensibilidade, é determinada como universal, então o objeto é determinado por esta relação e o juízo é objetivo.” Kant, Prolegômenos. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 38.

 

 

Pode-se dizer, em linhas gerais, que o empirismo assentou que a mente se conforma aos objetos, ou seja, colocou a mente numa instância passiva, de modo que tudo o que o conhecimento comporta é o que se encontra no objeto.

 

Immanuel Kant (1724-1804), por seu turno, no que chamou de revolução copernicana, colocou a mente numa posição ativa. A analogia feita com a teoria copernicana é clara: assim como se considerava que a Terra ficava parada e era o sol que girava ao seu redor (equivalendo a Terra à mente inerte e conformada aos estímulos dos objetos [sol] sobre ela), agora, com Copérnico, é o sol que fica parado com a Terra girando ao seu redor, ou seja, a mente (Terra) deixou sua posição passiva e tornou-se ativa.

 

Então, pode-se dizer que a mente passiva do empirismo está para o sol girando em torno da Terra; ao passo que a mente ativa kantiana está para a Terra girando em torno do sol, daí a denominação Revolução Copernicana para o labor epistemológico kantiano.

O resultado dessa nova postura foi a construção de um sujeito, chamado por Kant de sujeito transcendental, em função do qual são estabelecidas as condições, as possibilidades para o conhecimento, ressaltando que, na nomenclatura kantiana, mente e sujeito fundem-se.

 

Destarte, para Kant, o entendimento segue regras que devem ser investigadas, havendo uma fonte de todo conhecimento sobre os objetos, bem como uma faculdade de pensar e intuir pela sensibilidade, vale dizer, há uma faculdade de pensar que submete os objetos da sensibilidade de tal modo que as representações do sentido sujeitam-se às regras do entendimento.

 

Sob tal perspectiva, Kant ingressa na investigação acerca da metafísica, se está ou não no caminho da ciência, o que passa pela averiguação acerca da proposição “Todo evento tem uma causa”, donde extraiu que:

 

a) Não é um juízo que se possa produzir por generalização do que se vê no campo empírico;

b) é um tipo de saber que se pressupõe para observar os objetos, mas que não vem deles.

 

Logo, dá-se a participação do sujeito (mente) no conhecimento, já que a mente (sujeito) detém a causalidade nela mesma e, ao apreender o objeto como objeto do conhecimento, apreende-no como integrado na causalidade (pressuposta pela mente).

 

Assim, para Kant, a causalidade faz parte da estrutura cognitiva, de modo que o objeto do conhecimento carrega em si não só o que o mundo empírico lhe dá, mas, também, a parte correspondente que vem do aparato cognitivo.

 

Eis aí subjetividade moderna.

 

Isto posto, passando à análise do sujeito transcendental, apresenta-se composto por três campos, ou seja, três esferas de atuação, quais sejam: 1) o âmbito da sensibilidade; 2) o do entendimento e 3) o da razão.

 

No âmbito da sensibilidade, dá-se o conhecimento imediato, adquirido pelo aparato sensível que capta (intuição) os estímulos do mundo externo e, a partir daí, o produto da sensibilidade passa aos auspícios do entendimento, onde, segundo as categorias kantianas, ganha quantidade, qualidade, modalidade e relação. Assim, tem-se que a experiência (intuição) é o material para a origem dos conceitos.

 

Sobre o terceiro campo do sujeito transcendental, o da razão, pode-se dizer que detém as ideais, i.e., é aquilo que funciona como freio das categorias do entendimento, impedindo-as de estenderem-se além do necessário e de desencadearem situações de inconsistência lógica. Em outras palavras, a razão detém as ideias como ficções necessárias para controlar o aparato do entendimento.

 

Portanto, sensibilidade, entendimento e razão são as instâncias do sujeito do conhecimento transcendental, que é onde ocorre o conhecimento, ou seja, onde ocorre a crença verdadeira bem justificada (fenômeno).

 

Kant, assim, construiu sua teoria do conhecimento sem, contudo, desprezar o componente empírico do mundo, advindo das sensações, da experiência, tendo expressado o funcionamento conjunto de entendimento e sensibilidade na célebre assertiva de que “pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”[1], vale dizer, a experiência dá conteúdo ao pensamento e o pensamento ordena a experiência.

 

Dessa leitura, extrai-se que a experiência fornece o material para a formação, para a composição dos conceitos, observando-se aí um novo método, pelo qual, em vez de deixar que os objetos sejam contemplados pelo sujeito e sua razão, os objetos regular-se-iam pelo conhecimento, que sobre eles estabeleceria algo a priori.

 

Assim, para que a intuição possa saber algo sobre a natureza dos objetos, não se pode deixar conduzir exclusivamente por eles se quiser saber algo a priori sobre essa natureza. Então, os objetos dos sentidos devem regular-se pelos conceitos da intuição.

 

Com isso, Kant acaba por propor um novo caminho para a metafísica, afinal, sem uma faculdade de intuição para apreender os objetos da experiência, a realidade não pode ser conhecida. A experiência é, então, um conhecimento que requer entendimento, pois somente este pode dar as regras que possibilitam o acesso aos objetos e sua regulação, isto é, o conhecimento é ativo, não há pura e simples apreensão passiva da mente, como se esta fosse uma página em branco; tampouco o sujeito é dotado de uma mente voltada para si, havendo regularidade e leis a priori, conhecidas pela razão por detrás dos objetos da experiência.

 

Do exposto, depreende-se que não há acesso à realidade em si mesma, o que é real em si é, pois, deixado de lado, não pode ser conhecido. O “em si”, por ser “em si”, é incondicionado e, justamente por ser incondicionado, não pode ser conhecido, já que deixaria de ser incondicionado no momento em que fosse conhecido, porquanto, como dito alhures, há um sujeito de conhecimento que atinge os dados e os regula pelo seu modo de representá-los.

 

Desse modo, para Kant, a razão pura e especulativa deve e pode investigar a faculdade da própria razão para encontrar seus limites e estabelecer metas e atividades. A razão, nesse cenário, confere a si mesma os limites do que há para conhecer e, concomitantemente, conhece tais limites, que são os da experiência, superados apenas pela razão prática, campo da ética que Kant aborda nas obras “Metafísica dos costumes” e “Crítica da razão prática”.

 

Referência Bibliográfica

 

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 2. ed. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

 

FERRY, Luc. Kant: uma leitura da três “Críticas”. Tradução de Karina Jannini. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

 

LAW, Stephen. Filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão técnica de Danilo Marcondes. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

STOKES, Philip. Os 100 pensadores essenciais da filosofia. Tradução de Denise Cabral de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 2012.

 

REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Kant. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2.

 

MARÍAS, Julián. História da filosofia; tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. 5. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000, v. 6.

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

[1] Kant, Immanuel. Crítica da razão pura. 2. ed. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 57.

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