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CAUSALIDADE EM HUME E SUA INFLUÊNCIA NO DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO DE KANT

 

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

 

RESUMO

 

Immanuel Kant, inquietado com os bem estruturados argumentos de David Hume, que se opunham a uma existência, em si mesma, das coisas segundo um ponto de vista metafísico, inclusive a existência em si mesma das relações causais, assentou ter sido Hume o responsável por despertá-lo de seu sono dogmático. Este artigo propõe, então, apresentar, em linhas gerais, os argumentos de Hume, expostos na sua obra Investigação acerca do entendimento humano, e que fundamentaram uma nova forma de entendimento acerca da causalidade, apresentando, outrossim, os contornos no pensamento Kantiano sob tal influência.

 

Palavras-chave: Kant; causalidade; Hume, causação; inferência causal.

 

 

ABSTRACT

 

Immanuel Kant, disquieted with the well-structured arguments of David Hume, which opposed an existence in itself of things according to a metaphysical point of view, including the existence itself of causal relations, claimed that Hume was the responsible for awaken him from his dogmatic slumber. So, this article proposes to introduce the general arguments that Hume presented in his book “Enquire concerning human understanding”, which justified a new way of understanding causality, as well as to analyse, moreover, their influence on Kant’s filosophy.

 

Keywords: Kant; causality; Hume, causation; causal inference.

CAUSALIDADE EM HUME

 

 

David Hume (1711-1776) representou, para o século XVIII, não um ponto de partida para a filosofia, mas um ponto de chegada, já que sua proposta era a de encerrar as discussões entre empiristas e racionalistas que considerava estéreis, respondendo às três grandes questões sobre o conhecimento do seguinte modo: 1) O que se conhece? Apenas fatos por intermédio das impressões sensíveis e das relações entre ideias; 2) Como se conhece? Pela experiência e pela demonstração; 3) É possível haver certeza? Não há certeza em matéria de fato, a capacidade de investigação do entendimento humano é limitada.

 

Essas respostas, como doravante se verá, nasceram de uma nova perspectiva que Hume conferiu ao empirismo, qual seja, a perspectiva do ceticismo, segundo a qual não há possibilidade de verdade ou certeza quando se trata de o entendimento humano conhecer o mundo exterior, uma vez que a indução, i.e., ir dos fatos imediatos que impressionam os sentidos para as generalizações, não é capaz de conferir certeza alguma, já que os dados que o entendimento obtém acerca dos fatos são puramente empíricos e, assim, não só podem mudar como mudam.

 

Hume considerou que o modo como se opera com conceitos lógicos e matemáticos é inteiramente distinto do conhecimento empírico, porquanto figuras geométricas, operações e cálculos exigem, por princípio, a demonstração exata, a certeza imediata, de tal modo a ser imprescindível separar e distinguir entre esses dois tipos de conhecimento (empírico e lógico) para a compreensão do ceticismo de Hume quanto à causalidade e a ação do hábito, objetos do presente trabalho.

 

Pois bem, para Hume, sensações como a de dor ou prazer, lembrar dessas sensações, um acesso de raiva, recordar de tal sensação, são “percepções da mente”, dicotomizadas no que denominou “impressões”, as mais fortes e originárias, caso da dor e do prazer, ao passo que as demais, dependentes das originárias, as menos fortes, as que chamou de “pensamentos ou ideias”. Ora, pensamentos povoam nossa mente e, à primeira vista, são ilimitados e livres. Todavia, o que a mente faz é “combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência”[1]. Nessa afirmação, fica claro o empirismo Humiano: a mente e a vontade juntam os materiais recebidos pelos sentidos e pela experiência.

 

Assim, em Hume, todo pensamento complexo, inclusive a ideia de Deus, origina-se de ideias simples que, por sua vez, originam-se de sensações ou de uma percepção anterior. À guisa de exemplo, sem a sensação de uma cor não há ideia de tal cor; sem nunca ter experimentado uma certa paixão ou gosto, não se pode ter ideia do que seja essa paixão ou gosto. Então, os pensamentos ou ideias do intelecto conectam-se por associação, a qual se dá por: 1) semelhança; 2) contiguidade de tempo ou lugar e 3) causa e efeito.

 

Destarte, relativamente à semelhança e à contiguidade de tempo e lugar (espaço), tais modalidades de associação ocorrem, respectivamente, ao passar-se de uma ideia a outra que se lhe assemelhe, v.g., o nascer do sol que faz vir à mente um determinado sentimento, ou, então, quando se vai de uma ideia a outra que, costumeiramente, habitualmente, mostre-se concatenada à primeira no espaço e no tempo, v.g., a ideia de uma rua que me traz à mente a ideia de um determinado prédio nela situado (espaço); a ideia de formatura na universidade que me traz à mente a ideia de transcurso de X número de anos transcorridos (tempo).

 

No que concerne à causa e efeito, Hume entende que tal relação é própria da natureza humana, que tem a necessidade de estabelecê-la.

 

Então, dentre as operações do entendimento, diversamente do que se passa com a matemática, cuja verdade, como dito alhures, é demonstrável, exigindo-se tão só a não contradição (o que Kant viria a chamar de juízo analítico), a relação de causa e efeito, por seu turno, é uma operação do entendimento que diz respeito às questões de fato, isto é, que não implicam contradição, porquanto concebendo-se um fato de um ou de outro modo, a realidade não é ferida, vale dizer, não há contradição. Como exemplo, a proposição “o sol nascerá amanhã” é tão inteligível quanto a sua contrária “o sol não nascerá amanhã”. De ambas proposições, a única evidência que delas se tem é pela experiência e pela memória, ou seja, a evidência não é obtida pela demonstração ou pelo cálculo matemático (é o que Kant viria a chamar de juízo sintético a posteriori).

 

Desse modo, as inferências sobre fatos foram aprendidas e, portanto, a relação que se faz entre causa e efeito vem da experiência. É a experiência, e não o raciocínio a priori, que faz essa relação. É preciso saber pela experiência que a água de um rio pode afogar quem não sabe nadar, já que nada há no rio que, a priori, apenas pelo raciocínio demonstrativo, apenas pela razão, leve a concluir que pessoas podem afogar-se, como exemplifica Hume.

 

Para Hume, quando se trata de acontecimentos cotidianos, aos quais se está habituado há muito tempo, a impressão que se tem é de que a inferência entre causa e efeito é imediata, feita pela razão apenas; mas isso é só uma questão de costume, de hábito, afinal, todas as leis da natureza, todos os movimentos são conhecidos pela experiência, sendo o efeito algo sempre diferente da causa, vale dizer, a causa não contém o efeito. Como exemplo, no caso de uma bola de bilhar locomover-se quando outra a toca, são dois acontecimentos diversos a que o hábito e o costume reúnem em função de várias experiências no passado confirmarem tal ligação.

 

Como se vê, Hume descarta a existência de princípios universais, cuja origem residiria na ordem da razão ou numa ordem superior que regeria todos os seres. Para Hume, reitere-se, os princípios originam-se na associação entre ideias, inclusive a relação causa e efeito. Assim, a experiência fundamenta todos os raciocínios sobre causa e efeito, e as conclusões retiradas da experiência têm como base o hábito. À guisa de exemplo, tem-se, acerca do pão, que os sentidos informam sobre sua cor e consistência, mas a conclusão de que o pão alimenta vem da experiência, que se sustenta pela hábito, de tal modo que sempre que algo for apresentado como pão, a conclusão será que ele alimenta. A relação causa e efeito, na verdade, inexiste. O que há é apenas o hábito, já que pode haver algum pão que não alimente.

 

Em resumo, não há laço algum, não há qualquer vínculo entre a proposição “tal objeto é acompanhado de tal efeito”. A inferência é feita, mas falta a premissa menor que, justamente por tratar-se de uma questão de fato, não se apresenta, afinal, nas deduções lógicas, ela é necessária, mas em questões de fato não, pois estas dizem respeito à natureza, aos acontecimentos, e tudo na natureza pode mudar, pode se apresentar de forma diferente do que se apresentou no passado. Nada assegura que o futuro será conforme o passado, apenas o hábito.

 

De todo modo, afirmar que os raciocínios baseados na experiência não se apoiam de forma alguma na razão, no entendimento, nem em princípio algum a priori, não implica que eles não sejam usados nos processos do conhecimento, cujo princípio regente é o hábito, que permanecerá tal enquanto a natureza humana não mudar, até porque, uma pessoa jogada repentinamente neste mundo, mesmo dotada de razão e reflexão, pelo raciocínio de causa e efeito, nada poderia concluir e ficaria restrita à observação de que fenômenos sucedem-se uns aos outros.

 

Então, ante o exposto, evidencia-se em Hume um ceticismo não radical, à moda de Górgias e Pirro, já que, para Hume, basta ver e levar em conta aquilo que ocorre nas diversas situações, a conjunção de fatores, as inferências habituais, e como tudo isso pode, subitamente, mudar, surpreender. “Tudo que é pode não ser”[2]. Não há aí, em Hume, o risco de morrer espatifado por crer-se que cair de um precipício seja algo ilusório. Em outras palavras, o ceticismo humiano não conduz à inviabilização da lida humana no mundo, o que se depreende da seguinte passagem de sua obra:

 

“Sem a ação do hábito, ignoraríamos completamente toda questão de fato além do que está imediatamente presente à memória ou aos sentidos. Jamais saberíamos como adequar os meios aos fins ou como utilizar os nossos poderes naturais na produção de um efeito qualquer. Seria o fim imediato de toda ação, assim como da maior parte da especulação.”[3]

 

Assim, o ceticismo de Hume é quanto a um princípio a priori de causa e efeito que a metafísica, tradicionalmente, pressupõe ser a base racional, para além dos fatos, para além dos acontecimentos empíricos que são calcados na experiência. O círculo é uma figura geométrica, um ente da razão, as conclusões retiradas a seu respeito valem da mesma forma para todos os círculos, mas, como conclui Hume:

 

“(...) ninguém, ao ver um único corpo mover-se depois de ser impelido por outro, poderia inferir que todos os corpos se moverão (sic) sob um impulso semelhante. Todas as inferências derivadas da experiência, por conseguinte, são efeitos do costume e não do raciocínio. O hábito é, pois, o grande guia da vida humana. É aquele princípio único que faz com que nossa experiência nos seja útil e nos leve a esperar, no futuro, uma sequência de acontecimentos semelhantes às que se verificaram no passado.”[4]

 

 

KANT E O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

 

 

Immanuel Kant (1724-1804), estando no berço do racionalismo, ao assentar que a leitura de Hume o havia tirado do sono dogmático, deu a entender que o empirismo humiano o havia tirado do que se pode chamar de acalento do racionalismo, vale dizer, Hume o havia feito sair da inércia em que se encontrava acerca da crença, pouco justificada, nos sistemas metafísicos. Desse modo, a partir daí, Kant se viu como aquele destinado à unificação do racionalismo e do empirismo.  

 

Assim, o despertar Kantiano do sono dogmático decorreu, justamente, das consequências bombásticas da filosofia humiana, em especial para o presente artigo, no que concerne à sua conclusão sobre a inexistência, em si mesma, das relações causais, nos moldes tratados no tópico anterior.

 

Importa ressaltar que, apesar de desperto por Hume, Kant com ele não se coadunou, pelo contrário, criticou-o por seu ceticismo, sem, contudo, enveredar-se pelo dogmatismo, já que, para Kant, a possibilidade de tudo conhecer, com certeza, sem nem sequer indagar sobre os limites do entendimento, é descartada.

 

Kant toma para si, então, a incumbência de traçar uma crítica voltada à verificação dos limites precisos do que é e do que não é possível conhecer e afirmar. Portanto, a força e a importância de obra kantiana é a de separar aquilo que é ciência (no sentido amplo da palavra) daquilo que é mero dogmatismo.

 

Destarte, partindo-se do empirismo, que assentou que a mente se conforma aos objetos, ou seja, colocou a mente numa instância passiva, de modo que tudo o que o conhecimento comporta é o que se encontra no objeto, Kant, por seu turno, no que chamou de revolução copernicana, colocou a mente numa posição ativa. A analogia feita com a teoria copernicana é clara: assim como se considerava que a Terra ficava parada e era o sol que girava ao seu redor (equivalendo a Terra à mente inerte e conformada aos estímulos dos objetos [sol] sobre ela), agora, com Copérnico, é o sol que fica parado com a Terra girando ao seu redor, ou seja, a mente (Terra) deixou sua posição passiva e tornou-se ativa.

 

Então, pode-se dizer que a mente passiva do empirismo está para o sol girando em torno da Terra; ao passo que a mente ativa kantiana está para a Terra girando em torno do sol, daí a denominação Revolução Copernicana para o labor epistemológico kantiano.

 

O resultado dessa nova postura foi a construção de um sujeito, chamado por Kant de sujeito transcendental, em função do qual são estabelecidas as condições, as possibilidades para o conhecimento, ressaltando que, na nomenclatura kantiana, mente e sujeito fundem-se.

 

Destarte, na proposição “Todo evento tem uma causa”, tem-se que:

 

a) Não é um juízo que se possa produzir por generalização do que se vê no campo empírico;

b) é um tipo de saber que se pressupõe para observar os objetos, mas que não vem deles.

 

Logo, dá-se a participação do sujeito (mente) no conhecimento, já que a mente (sujeito) detém a causalidade nela mesma e, ao apreender o objeto como objeto do conhecimento, apreende-no como integrado na causalidade (pressuposta pela mente).

 

Assim, para Kant, a causalidade faz parte da estrutura cognitiva, de modo que o objeto do conhecimento carrega em si não só o que o mundo empírico lhe dá, mas, também, a parte correspondente que vem do aparato cognitivo.

 

Eis aí subjetividade moderna.

 

Isto posto, passando à análise do sujeito transcendental, apresenta-se composto por três campos, ou seja, três esferas de atuação, quais sejam: 1) o âmbito da sensibilidade; 2) o do entendimento e 3) o da razão.

 

No âmbito da sensibilidade, dá-se o conhecimento imediato, adquirido pelo aparato sensível que capta (intuição) os estímulos do mundo externo e, a partir daí, o produto da sensibilidade passa aos auspícios do entendimento, onde, segundo as categorias kantianas, ganha quantidade, qualidade, modalidade e relação. Assim, tem-se que a experiência (intuição) é o material para a origem dos conceitos.

 

Sobre o terceiro campo do sujeito transcendental, o da razão, pode-se dizer que detém as ideais, i.e., aquilo que funciona como freio das categorias do entendimento, impedindo-as de se estenderem além do necessário e de desencadearem situações de inconsistência lógica. Em outras palavras, a razão detém as ideias como ficções necessárias para controlar o aparato do entendimento.

 

Portanto, sensibilidade, entendimento e razão são as instâncias do sujeito do conhecimento transcendental, que é onde ocorre o conhecimento, ou seja, onde ocorre a crença verdadeira bem justificada (fenômeno).

 

Em conclusão, Kant, acordado de seu sono dogmático, construiu sua teoria do conhecimento racional sem, contudo, desprezar o componente empírico do mundo, advindo das sensações, da experiência, tendo expressado o funcionamento conjunto de entendimento e sensibilidade na célebre assertiva de que “pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”[5], vale dizer, a experiência dá conteúdo ao pensamento e o pensamento ordena a experiência.

 

 

Referência Bibliográfica

 

 

HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

 

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 2. ed. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

 

LAW, Stephen. Filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão técnica de Danilo Marcondes. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

FERRY, Luc. Kant: uma leitura da três “Críticas”. Tradução de Karina Jannini. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

 

ARAÚJO, Inês Lacerda. Curso de teoria do conhecimento e epistemologia. Barueri, SP: Minha Editora, 2012.

 

REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Kant. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2.

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

STOKES, Philip. Os 100 pensadores essenciais da filosofia. Tradução de Denise Cabral de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 2012.

 

MARÍAS, Julián. História da filosofia; tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

 

[1] HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 140.

 

[2] Ibidem, p. 203.

 

[3] Ibidem, p. 152.

 

[4] Ibidem, p. 151-2.

 

[5] Kant, Immanuel. Crítica da razão pura. 2. ed. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 57.

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