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COMENTÁRIOS A FRAGMENTO DOS ENSAIOS - LIVRO III, CAPÍTULO 13 - MONTAIGNE

 

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

“Nossa contestação é verbal. Pergunto o que é natureza, voluptuosidade, círculo e substituição. A questão é de palavras, e contenta-se com palavras. Uma pedra é um corpo. Mas, quem insistisse: “E o corpo, o que é? – Substância. – E substância, o quê?, e assim sucessivamente, acabaria acuando o interrogado no fim de seu dicionário. Troca-se uma palavra por outra palavra, e frequentemente mais desconhecida. Sei o que é “homem” melhor do que sei o que é “animal”, ou “moral”, ou “racional”. Para atender a uma dúvida, dão-me três: é a cabeça da hidra.” Montaigne, M. Os Ensaios, Livro III, cap. 13. São Paulo: M. Fontes, 2002. p. 430.

 

 

Nascido em 1533 e falecido em 1592, o filósofo francês Michel Eyquem de Montaigne foi um dos mais influentes pensadores do Renascimento, quiçá o mais conhecido por inaugurar, a partir de 1572, a forma literária moderna de se escrever denominada “ensaio”, que, segundo definição contida no dicionário Aurélio, consubstancia-se numa “obra literária em prosa, analítica ou interpretativa, sobre determinado assunto, porém menos aprofundada e/ou menor que um tratado formal e acabado”[1]. Assim, o ensaio, modo de escrever, acabou por intitular-lhe a obra, que denominou Ensaios (Essays).

 

Em linhas gerais, nos Ensaios, Montaigne assentou que a crença é falível, tendo revivido e modernizado o antigo ceticismo. Seu mote era “que sais-je?”[2], isto é, em tradução livre, o que sei eu?

 

Neste particular, sobre o ceticismo Montaigniano, importa destacar a lição de Luiz Eva:

 

“Nem o interesse de Montaigne em restaurar a coerência interna da filosofia cética em sua relação entre teoria e prática, nem seu elogio ao ceticismo, contudo, excluiriam a possibilidade de que ele próprio pensasse filosoficamente de outro modo. (...) no caso de Montaigne, de retomar distanciadamente a posição dos ‘mais sábios’ entre os antigos acerca da verdade filosófica, mas sim de reformulá-la e reapresentá-la várias vezes, empregando conceitos céticos e adaptando as argumentações dubitativas ao contexto das questões que ele próprio discute. Em harmonia com seu juízo sobre o ceticismo, trata-se não só de procurar examinar a lógica própria dessa filosofia, tal como disponível nos textos, mas também de procurar desenvolver uma prática filosófica dela consequente”.[3]

 

Pode-se dizer que sua obra influenciou o ceticismo tanto de Descartes quanto de Hume, afinal, põe tudo sob julgamento e assim o faz não para conhecer, mas, doutro modo, para aquilatar a extensão de sua ignorância.

 

Destarte, nos Ensaios, “a razão está sempre a libertar-se da ‘verdade’ que ela própria não tenha constituído como tal – da verdade ‘pronta’, dada de antemão ou legada etc.”[4], de onde se depreende que Montaigne tomou partido dos céticos, importando, então, doravante, desvelar de qual ceticismo se trata, o de Pirro ou o de Sexto Empírico (fenomênico), a fim de que sua assertiva, objeto desta dissertação, possa ser devidamente analisada.

 

Na medida em que sua obra Ensaios constitui-se nos ensaios de seu juízo, pode-se dizer que neles há erigida sua visão de mundo. No entanto, tal visão não é apresentada dogmaticamente; não afirma verdades indiscutíveis e absolutas, mas, diversamente, expõe suas impressões acerca dos aspectos das coisas e não sobre as coisas em si, o que coloca Montaigne próximo a Pirro e distanciado de Sexto Empírico, já que este, diversamente daquele, admite o ser por detrás das aparências, apenas não sendo possível conhecê-lo.

 

De todo modo, os textos de Sexto Empírico ajudam Montaigne, como esclarece Luiz Eva, “a compreender como ele mesmo qualifica sua adesão filosófica cética: não como adesão a uma ‘seita’, definida pelo assentimento a teses, mas sobretudo como engajamento em um gênero de filosofia, caracterizado pela prática argumentativa destinada à discussão das diversas teses de que se acerca, ciente da impossibilidade de estabelecê-las como verdadeiras”.[5]

 

Sobre sua harmonização com Pirro, Montaigne, a despeito de sua religiosidade, põe a latere as questões divinas, justamente por entender que o discurso humano sobre a divindade a humaniza e, portanto, implica seu desconhecimento e a própria negação da divindade, constatação que o leva a ocupar-se apenas com o plano humano, sobre o qual assevera não ter como fazer uma triagem entre aparências essenciais e não essenciais, havendo tão somente aspectos, de tal sorte a não se poder avançar para além da aparência em direção ao ser.

 

Assim, Montaigne afasta-se da ontologia comum, segundo a qual a aparência é aparência de alguma coisa, do ser que se delineia por trás dela. Para Montaigne, diferentemente, reitere-se, o ser da ontologia comum não passa de ilusão da linguagem, porquanto a linguagem é espontaneamente dogmática, impondo que se tome a parte pelo todo, o aspecto subjetivo das coisas como as coisas em si.

 

Nesse diapasão, a linguagem torna-se uma prisão que submete, que subjuga o homem, refreando-o e impedindo-o de expandir seus horizontes, por envolvê-lo numa teia, num emaranhado conceitual e de valores culturais.

 

É neste contexto que se avoluma a fala de Montaigne ora em análise, da qual pinço os seguintes trechos: “nossa contestação é verbal”, “A questão é de palavras, e contenta-se com palavras”, bem como “Troca-se uma palavra por outra palavra, e frequentemente mais desconhecida” e, finalmente, “Para atender a uma dúvida, dão-me três: é a cabeça da hidra”.

 

Com seu peculiar ceticismo, como acima singelamente tangenciado, nesses excertos bem retratou Montaigne o fenômeno aprisionante da dicionarização, em que uma palavra se explica por diversas outras, num interminável processo circular e vicioso, cuja analogia com a figura mitológica da hidra foi de notável precisão, afinal, “Nascida, como o leão de Neméia, do gigante Tifão e da terrível Equidna, a hidra, que infestava os pantanais de Lerna na Argólida, era provida de várias cabeças e, quando se lhe cortava uma, outras duas imediatamente a substituíam.”[6], tal qual se dá com os vocábulos, que se explicam por meio de outros mais que, ainda incompreensíveis remetem a outros e outros, numa senda sem fim.

 

Em suma, pode-se dizer que o humanismo não dogmático de Montaigne representou uma característica significativa da cultura renascentista que acabou por chegar à modernidade e tornar-se um elemento de distinção entre esta e os tempos clássicos gregos. Trata-se da noção popular e científica, bem menos presente na vida grega, de que podemos estar errados nos juízos que fazemos, até porque, releva notar, os gregos viveram segundo a ideia de que estar certo era muito mais plausível do que estar errado em relação a todas as coisas da natureza e da cidade, ao passo que, modernos e contemporâneos, herdeiros de muitos séculos de propagação da cultura judaico-cristã, têm-se na conta de pecadores, portanto, mais propensos ao erro que ao acerto.

 

 

Referência Bibliográfica

 

 

MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: livro III; tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

EVA, Luiz. A figura do filósofo: ceticismo e subjetividade em Montaigne. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

 

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa: coordenação Marina Baird Ferreira, Margarida dos Anjos. 4 ed. Curitiba: Positivo, 2009.

 

LAW, Stephen. Filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão técnica de Danilo Marcondes. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, v. 2.

 

STOKES, Philip. Os 100 pensadores essenciais da filosofia. Tradução de Denise Cabral de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 2012.

 

REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Kant. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2.

 

MARÍAS, Julián. História da filosofia; tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. 5 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000, v. 6.

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

VICENTINO, Cláudio. História geral. 8 ed. São Paulo: Scipione, 1999.

 

MÉNARD, René. Mitologia greco-romana: tradução Aldo Della Nina. São Paulo: Opus, 1991, v. 3.

 

 

 

[1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa: coordenação Marina Baird Ferreira, Margarida dos Anjos. 4 ed. Curitiba: Positivo, 2009, p. 760.

 

[2] LAW, Stephen. Filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão técnica de Danilo Marcondes. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 272.

 

[3] EVA, Luiz. A figura do filósofo: ceticismo e subjetividade em Montaigne. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 39.

 

[4] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 696.

 

[5] EVA, Luiz. Idem, p. 208

 

[6] MÉNARD, René. Mitologia greco-romana: tradução Aldo Della Nina. São Paulo: Opus, 1991, v. 3, p. 222.

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