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Certeza e Cogito

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

 

O tema encontra seu centro de discussão no pensamento do filósofo e matemático René Descartes. Em apertada síntese, no plano histórico, a obra de Descartes veio a lume no decorrer da primeira metade do século XVII, época na qual o homem libertava-se das amarras da Igreja em busca da autonomia do pensamento e da razão, sendo um século marcado pelas descobertas de Galileu, que vieram a comprovar o heliocentrismo copernicano, com destaque para a linguagem matemática (geométrica) no estudo dos fenômenos naturais e que contribuíram em larga escala para o surgimento das duas ciências modernas: a Astronomia e a Física.

Foi em tal cenário que viveu Descartes (1596-1650), i.e., em meio a uma revolução nos conhecimentos e que ensejou o desabrochar de novas concepções de moralidade, especialmente pela herança intelectual de dois grandes humanistas e pensadores franceses que o antecederam: Michel de Montaigne (1533-1592) e Pierre Charron (1541-1603), sendo o primeiro quem, na obra Os Ensaios (Les Essais), indagou sobre o certo e o errado na conduta humana e conferiu uma definição filosófica, e não apenas literária, à denominação humanista; o segundo, também ligado a Montaigne por laços de amizade e adepto de suas ideias, não obstante fosse teólogo, posicionava-se, por assim dizer, de forma bem arrojada para a época, já que reputava a virtude moral mais importante que a piedade, separando a filosofia da teologia e asseverando que somente a filosofia poderia levar o homem a alcançar sua perfeição.

Sob tais influências, é possível assentar ter Descartes deixado indelével sua marca como sendo o filósofo da viragem do Renascimento para Idade Moderna, já que o reconhecimento da subjetividade humana, de sua relação com o mundo e a necessidade de compô-la favoravelmente ao homem, deu a tônica do seu labor filosófico, com destaque para sua dúvida hiperbólica, a colocar em xeque as certezas, daí advindo a própria certeza do cogito.

Pois bem, tendo estudado em La Flèche, no Colégio Real dos jesuítas, em Anjou, França, no período de 1607 a 1615, Descartes experimentou estreito contato com a filosofia aristotélico-tomista (lógica, física, metafísica e ética), não se podendo olvidar, outrossim, que lhe eram familiares, por força do estudo de latim, os textos de Cícero, Ovídio e Virgílio, bem como os clássicos gregos, de modo que, ao assentar que a ciência deixada pelos antigos era defeituosa no que concernia às paixões, certamente estava aí a rechaçar em grande parte o conhecimento acadêmico adquirido em La Flèche sobre o pensar greco-romano, acerca do qual decidiu distanciar-se, a bem de melhor desenvolver suas reflexões na busca da verdade.

Pode-se dizer que mesmo sendo um estudante “de internato”, Descartes sempre teve mais olhos para o mundo do que para o que aprendia nos bancos escolares, sendo certo que não foi o que se pode denominar de um “filósofo da academia”. Quando recebeu sua herança de família, vendeu tudo e passou a viver de rendas e, assim, mantendo-se como livre pensador. Para poder viajar, alistou-se como soldado, tornando-se, depois, ao adquirir notoriedade, preceptor e interlocutor nas cortes.

Na sua busca pela verdade, Descartes queria investigar os “primeiros princípios” ou, à guisa Aristotélica, a “filosofia primeira” ou metafísica, o que fez, dando-lhe uma roupagem, porém, divergente do raciocínio finalista de Aristóteles, na medida em que a vestiu com adornos do “eu” que, posteriormente a Descartes, passou a ser tomado como “sujeito” em sentidos cada vez mais específicos.

A “filosofia primeira”, como veio da tradição aristotélica, relacionava-se à discussão de causas e princípios primeiros, à discussão do ser e da substância e, enfim, à verdade. Descartes, por sua vez, tratou a verdade segundo um novo critério, isto é, além da verdade como exatidão da representação da substância na mente, ele buscou um critério para afirmar a verdade ou a falsidade de enunciados e pensamentos, algo a que ele chamou de certeza.

Mas o que era a certeza para Descartes?

Diversamente dos escolásticos, de quem foi aluno, ele não estava interessado em pensar segundo os parâmetros da lógica, em função de investigações sobre a linguagem. Estava, sim, seduzido pelo pensamento matemático, em especial, pela geometria e, em geometria, algumas noções não são definidas, mas são compreendidas de imediato, intuitivamente – são intuições intelectuais. E foi isto o que Descartes cultivou, ou seja, a intuição no campo intelectual, ligada antes à matemática e à geometria que à lógica.

Quando teceu considerações sobre seu método, Descartes insistiu na ideia de ordem, discernimento e, principalmente, na questão da “clareza e distinção”. Desse modo, era legítimo acreditar-se em algo, com bases epistemológicas, se viesse do âmbito do pensamento “claro e distinto”. Mas, afinal, pode-se indagar, o que Descartes entendia por pensar de maneira “clara e distinta”? O melhor modo de entender tal postura, ao que parece, é vê-la aplicada à própria investigação filosófica de Descartes.

Sendo um atento observador, nas suas viagens, Descartes deparou-se com o fato de que pessoas de diversas culturas, acerca das quais se poderia dizê-las inteligentes, nutrirem crenças não só diferentes, como, às vezes, opostas, situação que insinuava relativismo. Além disso, também as ideias de Sexto Empírico, divulgadas a partir da publicação e circulação de seu livro, e de Martinho Lutero, que desafiou a autoridade papal, impressionaram Descartes, cujo projeto, então, remontava a uma das tarefas originais da filosofia, a de encontrar um saber capaz de colocar a salvo todo tipo de saber científico, de tal sorte que bloquear os mecanismos pelos quais ocorre o engano, que faz com que se tome o falso pelo verdadeiro, tornou-se premente para ele.

Assim, Descartes enfrentou o problema, para tanto, aceitando o desafio cético. Neste ponto, importante salientar, que o cético não duvida da verdade, mas sim da possibilidade de conhecimento, considerado como crença verdadeira e justificada. O cético não diz que a verdade não existe, até porque, se dissesse isto, tornaria sua assertiva uma autorrefutação. O que o cético assevera é que não é possível dar uma boa justificação ao que se afirma verdadeiro, recaindo a dúvida, portanto, sobre o conhecimento.

Descartes entendia, diante disso, que precisava apenas de um único enunciado que fosse irrefutável, que se apresentasse com “clareza e distinção”, tornando-se, então, um indicador do próprio critério para se admitir uma crença verdadeira – seria a régua infalível pela qual se poderia mensurar o que tivesse que ser mensurado, e dizer que se sabe de algo; seria uma régua que não precisaria de outra régua para avaliá-la.

Descartes, então, no afã de cumprir seu intento, assume, ele próprio, a condição de cético que, considerando que o duvidar de tudo seria uma tarefa infinita, propõe duvidar de algo que, caso sua dúvida se mostre eficaz, todo o resto entrará automaticamente em dúvida, até mesmo as crenças e enunciados que ele desconhece, ou seja, Descarte, por este método, investiga não o conhecimento, mas as faculdades que deveriam ter propiciado a ele o que até então chamava de conhecimento. Coloca em dúvida, dessa maneira, as faculdades pelas quais entende que o conhecimento é gerado: os sentidos, a imaginação e o intelecto. É a chamada “dúvida hiperbólica”.

Neste caminho, Descartes afirma que tudo o que há na mente vem de fontes determinadas: ou veio por meio dos sentidos ou já estava na mente. Duvidar de tudo o que há na mente, e de tudo o que um homem pode ter como sabido, é duvidar dos sentidos, o que vem de fora do intelecto, e da razão, o que já está dentro dele, de modo inato. Assim, quanto aos sentidos, tendo que já o engaram alguma vez, pôde crer na possibilidade de que o estão enganando sempre; entretanto, como duvidar do que independe dos sentidos? Como duvidar, por exemplo, que 2 + 2 são 4, ou de que a soma dos ângulos internos de um triângulo resulta 180º? Para tanto, Descartes valeu-se de uma estratégia, consubstanciada na elaboração da hipótese de um “gênio maligno” que, instalado no seu pensar, em sua cogitatio, estivesse fazendo-o enganar-se todas as vezes em que pensasse, inclusive acerca dos conhecimentos da matemática. Não há, agora, o que não esteja em dúvida e, com isso, acaba por surgir a primeira certeza e critério de verdade, qual seja, a de que, para ser enganado, o gênio precisa acessá-lo o tempo todo, e isso somente pode ser feito se ele, Descartes, estiver pensando. No texto original das Meditações, em latim: “Ergo sum, ergo existo”, destacando-se que a expressão que se tornou célebre, “Cogito ergo sum”, é de outro texto, do livro Princípios da filosofia; em "O discurso do método", ela aparece em francês: “Je pense donc je suis” (Penso, logo, existo).

Assim, tem-se, a partir de Descartes, que são as cogitationes que dão a certeza, não os seus conteúdos. A certeza é quanto ao próprio pensamento, não quanto ao que se afirma no enunciado que o expressa. Trata-se, pois, da certeza do cogito. Eis aí a resposta de Descartes ao ceticismo dos ventos renascentistas, vindos de Montaigne e da circulação do livro de Sexto Empírico.

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