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COMENTÁRIOS - FRAGMENTO DE BUSCA DA VERDADE - MALEBRANCHE

 

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

 

“[...] no tocante à maneira pela qual o espírito percebe todos os objetos de seus conhecimentos, é necessário que eu distinga nele quatro maneiras de conhecer. [...] A primeira maneira é conhecer as coisas por si mesmas. A segunda é conhecê-las por suas ideias [...] A terceira é conhecê-las por consciência [...] A quarta, conhecê-las por conjectura.” Malebranche, N. A busca da verdade. São Paulo: Discurso Editorial, 2004. p. 203

 

 

Nicolas de Malebranche nasceu em Paris, em 1638, e viveu até 1715. Estudou no Collège de La Marche e na Sorbonne, tendo ingressado, no ano de 1660, na congregação religiosa dos Padres do Oratório, onde se ordenou sacerdote em 1664, época em que tomou contato com a obra o Tratado do Homem, de Descartes, que o impulsionou a dedicar-se ao estudo sistemático do cartesianismo, não se podendo olvidar que, na sua formação religiosa, o estudo do agostinismo foi uma constante.

 

O ponto central da filosofia de Malebranche é o denominado “ocasionalismo”, segundo o qual a “vontade e o pensamento humano não agem diretamente sobre os corpos, mas constituem ‘ocasião’ para que Deus intervenha na produção dos respectivos efeitos nos corpos, assim como os movimentos dos corpos são ‘causas ocasionais’ para que Deus intervenha na produção das respectivas ideias”[1].

 

Sobre a filosofia ocasionalista, pode-se dizer que foi preparada por Louis de la Forge, em 1661, com a obra Tratado sobre o Espírito do Homem, bem como por Geraud de Cordemoy e Johann Clauber, respectivamente, nas obras Sobre a Distinção entre Alma e Corpo e Sobre a Comunicação entre Alma e Corpo, tendo sido efetivamente formulada por Arnold Geulincx (1624/1669), para quem a verdade primeira é a existência do sujeito pensante consciente, vale dizer, que o sujeito é consciente do que faz e, se não tem consciência, então é porque não fez. Deste modo, como o ente humano não tem consciência de produzir efeitos sobre o corpo, não é o sujeito que os produz, sendo, apenas, espectador e não ator de tudo o que ocorre em paralelo na alma e no corpo.

 

Na abordagem de Geulincx, “A alma e o corpo são como dois relógios sincronizados, não por interação recíproca, mas porque são continuamente regulados por Deus”[2]. Trata-se da plena aceitação da vontade divina – ita est, ergo ita sit (em tradução livre: isto é assim, então é).

 

Após Geulincx, o “ocasionalismo” teve sua mais acurada elaboração na primeira obra de Malebranche, La Recherche de la Vérité (A Busca da Verdade), de onde se extraiu a passagem ora sob análise. Publicada em 1674/1675, sendo editada quatro vezes em quatro anos, de influência notadamente cartesiana, uma vez que nela estavam presentes o “dualismo entre o pensamento e a matéria extensa; regra da evidência e (no livro 6) desenvolvimento do método (utilizando às vezes as Regulae de Descartes, ainda inéditas); finalidade vital das sensações (com a crítica de seus erros e a descrição da percepção a distância, prolongando a de Descartes em Dióptrica e O Homem; no livro 1); assim também no que se refere às paixões, cuja classificação combina Santo Agostinho (subordinação da alegria e da tristeza ao amor e ao ódio) e Descartes (primado da admiração, paixão incompleta)”[3].

 

Todavia, Malebranche divergiu frontalmente de Descartes ao recusar o inatismo cartesiano, bem como rechaçando terem sido simultâneas as criações da essência e da existência, mas, doutro modo, asseverando haver imediata união do espírito (alma) com Deus, como Razão Universal, sendo esta, precisamente, a condição da visão em Deus, de modo que as ideias dos seres por Deus precede a sua criação.

 

Destarte, como visto, Malebranche, indo além de Descartes no que concerne à contraposição dualista entre a res cogitans e a res extensa, assentou que as funções da alma reduzem-se ao pensar e ao querer, negando que os corpos agem sobre as almas e vice-versa, isto é, que corpos e almas tenham interação uns sobre os outros.

 

Assim sendo, em Malebranche, à exceção de Deus, com o qual a alma está diretamente unida, a alma encontra-se separada de tudo e, por isso, tudo o que conhece e pode conhecer dá-se unicamente por meio do que chamou de a visão em Deus.

 

Desse modo, a primeira maneira de ver as coisas proposta por Malebranche, ou seja, conhecê-las por si mesmas, ocorre quando elas se revelam inteligíveis por si mesmas, por agirem diretamente sobre o espírito (alma). Nesta seara, apenas Deus aí se situa, porquanto somente Ele pode agir sobre o espírito e a ele revelar-se. Como o próprio Malebranche afirma: “Somente Deus é visto com uma visão imediata e direta; somente ele pode iluminar o espírito por sua própria substância”[4].

 

Sobre conhecer as coisas por suas ideias, tem-se que, para Malebranche, tudo o que se conhece é só a ideia e as ideias, por estarem na mente de Deus, são visíveis à mente em si mesmas, são realidades espirituais (o mundo das ideias). Então, na medida em que as almas estão unidas a Deus, elas podem acessar as ideias que Nele estão, daí porque só se pode conhecer alguma coisa em Deus.

 

O conhecer por consciência, entretanto, é o que cada qual tem de sua alma, que se apresenta pelo sentir, pelas sensações interiores, uma vez que a concepção que dela se faz não passa pelas ideias, já que não é vista em Deus. Exemplifica Malebranche que não fossem pelas sensações de dor, calor, luz, dentre outras, não se poderia saber se a alma seria capaz disso, justamente porque não é conhecida por sua ideia.[5]

 

Acerca das conjecturas, relacionam-se ao conhecimento sobre as almas de outros homens e as puras inteligências, isto é, por analogia ao que se conhece pelas ideias e pela consciência, supondo que o que se dá para si mesmo, de modo similar, também se dá para outrem.

 

Enfim, de todo o exposto, nota-se claramente que Malebranche, em sua filosofia da verdade, buscou afastar dos homens o que entendia ser a sua miséria, ou seja, o erro e suas causas e, nesse iter, o descortino se fazia mediante a análise das percepções da alma: os sentidos, a imaginação e o entendimento, sempre norteado pela ação eterna e invariável um Deus que era a causa eficiente de absolutamente tudo, de tal modo que as coisas só aconteciam quando o desejo impotente do homem coincidia com o querer eficaz da divindade suprema (ocasionalismo). Assim, sendo a ordem de Deus eterna e invariável, poderia ser compreendida pelo entendimento (faculdade da alma puramente passiva).

 

 

Referência Bibliográfica

 

 

MALEBRANCHE, Nicolas. A busca da verdade (textos escolhidos). Tradução e notas técnicas de Plínio Junqueira Smith. São Paulo: Discurso Editorial, 2004.

 

LAW, Stephen. Filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão técnica de Danilo Marcondes. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, v. 2.

 

REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Kant. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2.

 

MARÍAS, Julián. História da filosofia; tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. 5 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000, v. 6.

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

 

[1] REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Kant. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990, v. 2, p. 393.

 

[2] Idem, p. 394.

 

[3] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 646.

 

[4] MALEBRANCHE, Nicolas. A busca da verdade (textos escolhidos). Tradução e notas técnicas de Plínio Junqueira Smith. São Paulo: Discurso Editorial, 2004, p. 204.

 

[5] Idem, p. 206.

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