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As Paixões da Alma (Descartes)

 

Comentários aos artigos 1; 17; 18; 19; 27; 28 e 29

por Gilbert Ronald Lopes Florêncio

 

 

Este trabalho consiste no comentário dos sete artigos, acima destacados, da obra “As Paixões da Alma”, escrita pelo filósofo francês René Descartes a partir do final de 1645 e publicada no ano de 1649, quando deixou a Holanda para estabelecer-se na Suécia, a convite da rainha Christina.

 

Em apertada síntese, no plano histórico, a obra de Descartes veio a lume no decorrer da primeira metade do século XVII, época na qual o homem libertava-se das amarras da Igreja em busca da autonomia do pensamento e da razão; século marcado pelas descobertas de Galileu e que vieram a comprovar o heliocentrismo copernicano, com destaque para a linguagem matemática (geométrica) no estudo dos fenômenos naturais e que contribuíram em larga escala para o surgimento das duas ciências modernas: a Astronomia e a Física.

 

Foi em tal cenário que viveu Descartes (1596-1650), i.e., em meio a uma revolução nos conhecimentos e que ensejou o desabrochar de novas concepções de moralidade, especialmente pela herança intelectual de dois grandes humanistas e pensadores franceses que o antecederam: Michel de Montaigne (1533-1592) e Pierre Charron (1541-1603), sendo o primeiro quem, na obra Os Ensaios (Les Essais), indagou sobre o certo e o errado na conduta humana e conferiu uma definição filosófica, e não apenas literária, à denominação humanista; o segundo, também ligado a Montaigne por laços de amizade e adepto de suas ideias, não obstante fosse teólogo, posicionava-se, por assim dizer, de forma bem arrojada para a época, já que reputava a virtude moral mais importante que a piedade, separando a filosofia da teologia e asseverando que somente a filosofia poderia levar o homem a alcançar sua perfeição.

 

Sob tais influências, é possível assentar ter Descartes deixado indelével sua marca como sendo o filósofo da viragem do Renascimento para Idade Moderna, já que o reconhecimento da subjetividade humana, de sua relação com o mundo e a necessidade de compô-la favoravelmente ao homem deu a tônica ao seu labor filosófico, não passando in albis na obra ora em análise.

 

Assim, feito este intróito, passa-se, doravante, às considerações sobre os artigos já epigrafados, o que se fará em abordagem conjunta, visando conferir unidade à ideia que deles se extrai, ressaltando que tais artigos não serão aqui transcritos, porquanto a proposta deste trabalho pressupõe que sua leitura se faça acompanhar do texto cartesiano.

 

Pois bem, tendo estudado em La Flèche, no Colégio Real dos jesuítas, em Anjou, França, no período de 1607 a 1615, Descartes experimentou estreito contato com a filosofia aristotélico-tomista (lógica, física, metafísica e ética), não se podendo olvidar, outrossim, que lhe eram familiares, por força do estudo de latim, os textos de Cícero, Ovídio e Virgílio, bem como os clássicos gregos, de modo que, ao assentar que a ciência deixada pelos antigos era defeituosa no que concernia às paixões, certamente estava aí a rechaçar em grande parte o conhecimento acadêmico adquirido em La Flèche sobre o pensar greco-romano, acerca do qual decidiu distanciar-se, a bem de melhor desenvolver suas reflexões na busca da verdade nesta seara.

 

Nesta esteira, Descartes tomou por ponto inicial de sua reflexão a observação de que um evento era denominado paixão em função do sujeito sobre o qual recaía, sendo, no entanto, chamada ação em função de quem o fizera acontecer. Notou, contudo, que apesar de ação e paixão não serem coisas diversas, mas a mesma coisa com nomes diferentes, assim se dava apenas para fins de contraposição com as correlatas figuras do agente e do paciente, estes sim, seres amiúde diferentes. É nesse sentido que afirmou, no artigo 1, que “(...) a ação e a paixão não deixam de ser sempre uma mesma coisa com dois nomes, devido aos dois sujeitos diversos aos quais podemos relacioná-la”.

 

Por ocasião do art. 17, após dedicados, além do primeiro artigo, introdutório, outros 15 mais visando distinguir corpo e alma, Descartes afirma que só se pode atribuir à alma o pensamento e nada mais, dicotomizando-o em: 1) ações da alma e 2) paixões da alma, estando aquelas atreladas às vontades, ao passo que estas mantinham liame com as percepções e os conhecimentos, i.e., tudo o que se origina para além da alma, não sendo ela própria a única causa. Trata-se aqui de uma definição lato sensu que Descartes outorgou à alma.

 

Também a vontade e a percepção foram dicotomizadas por Descartes, de modo a haver ações que terminam na própria alma, isto é, ações da alma e ações que terminam no corpo. Os exemplos de que se vale, no art. 18, para distinguir uma espécie de vontade de outra deixam bem claro que as primeiras dizem respeito ao intangível, à res cogitans, ao passo que as demais são concernentes ao tangível, à res extensa, sendo ambas, entretanto, atribuições da alma (pensamentos).

 

A percepção, por seu turno, consubstanciando-se no perceber, no apreender algo, era, para Descartes, um processo desencadeado pela atuação da alma (ação) ou do corpo (paixão), sendo as decorrentes da alma aquelas concernentes às vontades, às imaginações (interessante notar o vocábulo imaginação como imagem em ação), não se podendo descuidar, todavia, como cristalinamente explica Descartes, “(...) que não poderíamos querer qualquer coisa que não percebêssemos pelo mesmo meio que a queremos” (art. 19), identificando-se aí a percepção e a vontade, que se tem na conta de ação, e não de paixão, apenas para que se denomine, nas palavras de Descartes, “pelo que é mais nobre”.

 

Importa salientar, nestes comentários às Paixões da Alma, em cotejo com a Meditação VI de sua obra Meditações, que, a partir da res cogitans, vale dizer, da realidade pensante (sujeito que pensa), Descartes acabou por convencer-se da existência de coisas corpóreas – res extensa – e da relação entre ambas, ou seja, da relação entre corpo e alma a formarem um todo, residindo aí o problema de que, antes, apenas havia a consciência em si como objeto e, agora, igualmente se apresenta como tal a realidade externa, corpórea, delineando-se a conclusão de que o mundo exterior impacta o espírito por meio do corpo. Eis aí um dilema a ser enfrentado por Descartes, ante a possibilidade de jogar por terra o cogito ou, doutro modo, aquiescer sobre um inatismo para ele insustentável. Certo é a discussão sobre este dilema, por si só, enseja outro trabalho mais aprofundado, tendo sido apresentado nesta oportunidade no intuito de indicar as várias condições de possibilidades exegéticas do texto cartesiano.

 

Já estando agora pela altura dos três derradeiros artigos objeto destes singelos comentários, quais sejam, arts. 27, 28 e 29, sintetizam eles o esforço de Descartes para, sob o viés da alma, distinguir as paixões que advêm do corpo dos pensamentos que lhe são alheios, o que possibilitará, mais adiante em seu texto, a criação de uma moral cartesiana, em que as paixões relacionam-se com o livre-arbítrio, afirmam e realizam na conduta do homem o seu caráter de animal espiritual.

 

 

Referência Bibliográfica

 

 

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